Monthly Archives: Junho 2020

Um das coisas que me faz regressar à minha infância e inicio da adolescência, são os duches de água fria, que não é fria, mas morna… pois o meu pai, há muitos anos – como tantos pais do Alentejo – colocou um depósito de água no terraço, que claro está, passa o dia a levar com o sol e aquece a água. Como tantos pais, porque me recordo que nessa altura, toda a gente que podia, o fazia. Para termos sempre água… lembro-me que nessa altura havia cortes e contenções de água – uma coisa que infelizmente, vai entrar na moda daqui a uns tempos…

E de banho em banho… também me recordo muito de chapinhar no Guadiana. Para a Ajuda, pra Belver, pro meio do mato. Era uma grande festa. Mais na altura da Páscoa, quando os dias aumentam e aquecem, e tudo começa a fluir. Aos domingos, aos feriados, na segunda feira de rebolar o vale.
Íamos muito cedo, ás vezes ia na camioneta do Julio da Vidreira. Levávamos de tudo… desde cavaletes e pranchas de madeira para fazermos mesas, todo o tipo de pitéus e guloseimas, até à Coca Cola e Fanta espanholas, bem como os Camping gaz para nos dar luz depois do por do sol e aquecerem a comida.
A Anica, o Luís Banana, a Guida, a Marta, o Martinho… bem!, éramos tantos e apareciam sempre mais… Parecíamos uma trupe de saltimbancos, com o estaminé que montávamos, a cumplicidade, as anedotas e a boa disposição.

Pensando bem… talvez a minha vida profissional tenha começado nessa altura… ou talvez ainda não tenha deixado de ser adolescente. Sem dúvida que sou muito do que sou – e grato – por aqueles momentos e por todas aquelas pessoas e energias.

Não havia telemóveis, nem tablets, nem… Só nós e a natureza e as nossas vontades. A criatividade passava pelos paus e pelas pedras, pelas correrias e rebolares encosta abaixo, pelos mergulhos frescos, pelas aproximações às vacas e as imitações dos seus sons.

Por estes dias o Guadiana é um refugio de fim de tarde… longe de todas as possibilidades de contágios…  Já não corro como naquela altura, mas continuo a brincar aos saltimbancos… fazendo exercícios de equilíbrio e concentração em cima de montes de pedras, meditando e camuflando-me com a mãe terra,  apurando a voz para emitar o som das vacas, dos patos que passam a voar e o salto dos peixes na água – pronto!, imagino como será o movimento deles, enquanto me deixo boiar dentro de água.

E sem duvida que trago ideias, que as utilizo no que tenho, entre mãos a fazer…

O inferno está vazio e todos os demónios estão aqui. |  William Shakespear

Já la vai o tempo em que quem era mau, sádico, desobediente, mentiroso, maquiavélico, ladrão e criminoso ia para o inferno.
Creio que deus ou os deuses, se fartaram deles e agora remetem essas mesmas almas incandescentes para a terra, ao lado de quem ainda tem um pingo de consciência, de quem ainda luta por alguma coerência na vida, na vida de cada um, e na dos outros.

Mas os deuses fartaram-se e já não sabendo mais o que fazer, limparam os infernos e como uma oferenda cega, como um nectar envenenado, minaram as nossas vidas com esses, estes, demónios.
Eles estão em todo o lado, desde o nosso vizinho que mata a filha e a mãe, até ao policia que sufoca alguém, ao politico que só quer saber do seus interesses e manda os seus súbditos criarem estratagemas para dar, por um lado, aos amigos e roubar por outro, o comum mortal, aos juizes sem piedade, aos… aos…

A terra está a transbordar de maldade, interesse e individualismo – salve-se quem puder! Talvez mesmo uma cegueira e vicio pela desgraça se tenha apoderado de muitos – nem os deuses sabem mais o que fazer com tais seres.

E vivemos todos com a sombra de uma corda que balança junto dos nosso pescoços, assaltando os nosso pensamentos e fazendo rugas na almofada para não nos deixar descansar. O inferno está vazio, não só porque os deuses o limparam e atiraram, como qualquer desgraça para a terra, mas porque nos dias que correm as chamas incendeiam as cidades, os campos, os rios e os mares… 

Sei que em todos os tempos, e de tempos em tempos, os deuses semearem na terra, desgraças e atiraram demónios cá para baixo, para manterem um “cash flow” entre o inferno e o céu. Mas creio que hoje em dia, a revolta e o burnout dos deuses é tão grande que nem eles mais querem saber… e atiraram para as nossas vidas a resolução de tantos julgamentos e de tanta podridão…

E o que fazemos nos?, pobres seres crédulos na esperança que cheguem dias melhores… acabamos por aceitar sem nada ou pouco fazer, é a vida! – dirão alguns, como se um terrível devir nos alcançasse sem mais. Seja pela vontade dos deuses, seja pela nossa incapacidade de agir ou pela desmoralização de ser…

O inferno está vazio de demónios, mas aqui em baixo vamos sendo todos almas penadas e a penar pela frieza, pelas mentiras, pelo cinismo, pelo sadismo de todos aqueles que deveriam estar algures, a dar luz com as chamas dos seus corpos podres e pobres a arder…

E muito me engano – os deuses queiram que sim – o inferno vai continuar a ser aqui…