Monthly Archives: Abril 2014

Notas de viagem sem esferográfica

E regresso a regressar…

… e mais uma vez deixamo-nos surpreender pelo embalo da linha no movimento contrario ao do sentido da marcha… parece que sinto os discos externos das cidades ou dos tempos,  a serem trocados… ou como eu gosto de dizer: as diskette’s a mudarem.

Parece que é nesta terra sem dono que a criatividade existe
ponho-me a escrever, aproveitar o balançar do comboio e do coração

Tenho uma bonita moça por companheira de viagem
mesmo aqui do lado esquerdo
on y va!
…/…
A companhia mudou
continua a ser femenina.
A antiga, não queria nada comigo, creio eu
e esta adormeceu…

Como um truque de ilusão: ponho os phones sem som algum e fico a ouvir as histórias dos assentos vizinhos… é que hoje em dia, toda a gente parece ter histórias para contar ao telemóvel… mas parece que os bocais dos microfones dos aparelhos são surdos… e por isso, mesmo que os phones tivessem algum tipo de som, ouvir-se-ia ainda as histórias alheias da carruagem.

A diferença entre estas wc’s e as de um regional só deve mesmo ser no interior, porque as trajectórias para o buraco, têm os mesmo referenciais que este intercidades… e lá falhamos… e lá pagamos mais!

As Tricanas eram moças que levavam água,
há até algumas histórias e lendas associadas…
Em Aveiro estão pintadas na fachada da estação antiga.

A companhia no silêncio muitas vezes é feita com o receio para não importunar e perturbar os pensamentos de quem se acompanha… como podemos não pensar, também podemos não falar… e uma forma de respeito comunicativo no silêncio instala-se… porque quando estamos, estamos mesmo só ali,  para amparar se for  o caso… e amparamos, acreditamos nisso com o nosso egoísmo.

As águas vindas de um rio chamado água, matam alguma cede que vai crescendo… pensamos com um sorriso nessas historias, quando passamos ao lado do rio Tejo, perto das Portas do Sol em Vila Velha de Ródão….
E a água acena-nos pela janela…
e também nos nossos  olhos  começamos a sentir uma outra água…

Quase que me parece que adormeci ontem no autocarro e acordei agora no comboio… embora o pesadelo de ter visto o meu pai a cair em casa, fosse mesmo real.
on y va!
e a vida assim se esvai…

Creio que é a primeira vez que viajo de costas para o sentido da marcha do comboio ou pelo menos é a primeira vez que este deslocamento me deixa a pensar assim. Embora a imagem seja precisamente a contraria, mas parece que vou deixando para trás a vida… e parece que vou fazendo um reload de uma outra… os drivers vão carregando memórias e recordações de muitos anos atrás… e tudo em movimento…

Vejo uma chaminé, daquelas de ladrilhos vermelhos, bem imponente na paisagem, que deita fumo branco espesso, como se fosse um comboio fantasma preso no tempo, no meio da lezíria ribatejana…

Estes trespassares de sítios e de lugares, são como uma flecha que vai cortando o ar velozmente… e consigo abre feridas de lembranças, algumas de pessoas e situações que já tínhamos esquecido ou que o nosso cérebro nos pregou a partida de o fazer.

Há ecos de vozes e sons de outras viagem, de outras pessoas, de outros lugares, que em movimento e sem pensar, se tornam cenários do que parece ser uma outra vida que já não tenho… esta coisa da timeline  é uma coisa muito estranha – aqui e agora estou aqui, mas aqui e agora, poderia jurar que fui ali, sendo esse ali um outro espaço e um outro tempo

Os campos estão encharcados de água, a mesma água que em mim reverbera e faz oscilar as emoções ao ritmo dos pequenos solavancos provocados pelos carris da linha do comboio.

… e tudo em movimento… as saudades de tantos que não vejo há muito, as dores de outros que já não vou ver… e um receio até, por aqueles, ainda tão pequenos que acabam de chegar cá.

E tenho a sensação de que já escrevi tudo isto anteriormente…

Ciclos, não sejam eles movimentos também… contradições da existência e de sentires que se vão misturando com o meu reflexo no vidro da janela da carruagem.

Vejo os meus pelos brancos da barba, e sem os contar tento aventurar um número ao azar de quantos serão… e sei que nunca poderei adivinhar, pois mesmo que o fizesse, nesse mesmo instante ou no instante precisamente seguinte, logo outro perderia a cor… e tudo em movimento.

… e eu que pensava que aos 40 tudo era mais certo, mais conclusivo, mais claro e simples… e como todo o movimento tem um fim, este não podia ser diferente, 17:07h chegada à Covilhã.