Monthly Archives: Março 2010

…muitas vezes fico a olhar esta nossa fotografia que me resta… não consigo deixar de recordar a forma como nos beijávamos, o fundo dos teus olhos, o que dizíamos com as nossas bocas sem falar, a pressão do teu rosto contra o meu… creio que por a ver tanto… de puxar tantas vezes a fita dessa memória… ela foi desgastando, perdendo aos poucos a cor, a luz, a própria recordação… até a roupa, a nossa carne… agora apenas vejo o resto de tudo o que fomos… muito provavelmente quando passar novamente a fita, irei transformar tudo em cinzas

…nesta rua, e neste mesmo lado da rua, um pouco abaixo da placa, há uma porta larga que dá para uma sala com potes antigos e mesas de madeira escura…nesta rua e depois desta sala, é uma sala grande, acolhedora, com uma lareira, muitas mesas, cheiros do campo e de enchidos, às vezes canela… e caras simpáticas… nesta rua e nesta sala grande, comemos divinalmente, gulosamente até… por vezes chupamos mesmo os dedos… nesta sala há um acolhimento e uma paz…há sempre a vontade de ir e ser recebido e presenteado com manjares alquimistas… há sempre uma palavra sorridente… há sempre um adeus até logo… nesta sala do molha o bico da rua quente da placa da singer em Serpa

… não só porque cantava um fado, numa mesa com 3 guitarras e dois jarros de barro tinto… não só porque cantava bem e de dentro… não só porque há momentos em que perdemos a consciência do tempo… não só porque a sua estatura era pequena o que alegrava a sua figura… não só por tudo isso, mas porque nas rugas da sua expressão… na cor tostada pelo sol do campo… nas mãos fortes e ásperas… o canto e o fado era outro… desenhos que o tempo lhe fez, vincos e sulcos na pele… e dentro dela

… resolvi deitar-me ao comprido, quieto, quietinho sem me mexer. As mãos ao lado do corpo, pousadas em repouso completo. Aos poucos fui abandonando o meu peso por completo…as pernas, a cintura, as costas um braço de cada vez e a cabeça, até parece que não pesava… e nesse abandono esticado ao comprido deixer ir também os pensamentos, as recordações e as vivências… abandonei-me por completo, esticado ao comprido e sem ter percebido, deixei-me mesmo de mim… só lá fiaram os restos

…deram-me três minutos para eu decidir… três minutos apenas para decidir em relação à minha vida… três simples minutos, que creio bem já não serem tantos… três minutos para decidir se queria asas…agora é que me dizem isso! E só me dão três minutos… como não tenho muito jeito para tomar decisões, nem respondi… fui andando… se tiver de ter asas, com certeza vou encontrá-las…